17/07/2007

O grande continente azul - J. J. Letria

Eu sou a água do mar,
a água de todos os mares,
a água azul, verde ou cinzenta
que liga os continentes,
as ilhas, as línguas de terra
onde o trigo cresce,
onde os pássaros fazem ninho,
onde as cidades despertam,
onde as mãos amassam o pão,
onde as plantas e as pedras
se casam em manhãs de sol
quando chega a Primavera.

Por cima da minha cabeça
está o céu e quem diz o céu
diz a noite e o dia,
diz a manhã e a tarde,
o lençol de nuvens
que guarda a chuva,
o vento e a geada.

Sou habitada pelos peixes,
que são os meus melhores amigos,
os pequenos cavaleiros das ondas
que viajam comigo
até às praias, até às baías,
e voltam comigo para o fundo,
enfeitados de algas e corais.

Gosto dos peixes
e eles gostam de mim
como só os peixes sabem gostar,
batendo as pequenas barbatanas
quando estão contentes,
quando querem que se saiba
que estão felizes.

Eu sou a água do mar,
a água de todos os mares,
dos oceanos imensos
ou dos pequenos mares quietos
onde o sal é tanto
que faz arder os olhos
só de olharmos para eles.

Tenho alimento bastante
para dar de comer
a todos os meus filhos
e também aos filhos da terra,
às bocas que pedem mais pão.
Habita em mim a riqueza:
o ouro, o petróleo, o carvão.
Por isso me cobiçam,
me furam o corpo
à procura de novas riquezas.

Não quero para mim
aquilo que as minhas águas
escondem e protegem.
Mas só darei ao homem
aquilo que o homem
souber usar, trabalhar, melhorar.
Não quero o ouro
para me adornar,
o petróleo para me mover,
o carvão para me aquecer.
A minha riqueza é de todos,
mas é preciso que saibam
merecê-la, aumentá-la, amá-la.

Há quem me chame
grande continente azul
e eu gosto deste nome,
porque é bonito
e porque gosto do azul
que é a minha cor preferida.
Azul de água e de vento
de brisa e de espuma;
azul do céu de Junho
reflectido nas escamas de prata
dos peixes voadores.
Gosto de ser continente,
mas continente de água,
o maior de todos,
o mais fundo e secreto.
Gosto das estrelas do mar,
dos búzios e das conchas
e tenho uma guarda
de cavalos marinhos
que me acompanha
para onde quer que eu vá.

É no meu rosto de água
que as estrelas e os astros
se vêem ao espelho,
se miram e embelezam.
É no meu rosto de espuma
que as crianças constroem
castelos de sonho e areia.
E como eu gosto das crianças!
Queria ser um grande,
um enorme jardim verde
para elas poderem brincar
abrigadas de todas as tempestades.
Se às vezes me zango
e me torno temporal,
acreditem que não é por mal.
É só porque não gosto
que me sujem as águas
com óleo de navios,
que me estraguem o sono
com ruídos de motores,
que me manchem o azul
com lixo e nafta.
Sou irmã dos ventos,
dos astros e das estações,
das quatro estações que o ano tem,
dos doze meses
em que elas se repartem.
E digo: o que é meu
também é vosso.
Se estiverem comigo
estarei convosco: com os pescadores,
com os navegadores solitários,
com os astros e as auroras boreais.
Eu sou a água do mar,
a água de todos os mares,
de todos os oceanos,
do Atlântico, do Índico, do Pacífico.
Sou casa, celeiro, refúgio.
Todos os dias aprendo novas coisas
que vale a pena aprender:
nomes de plantas, de rios, de cidades.
Quero ter a cor do sonho,
o cheiro da maresia
e do peixe fresco.
É em mim que começa o azul
e também a viagem do sol
à superfície das águas.
A viagem dos homens à descoberta.






José Jorge Letria
O Grande Continente Azul

Mafra, Livros Horizonte, 1985
adaptado

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