17/07/2007

O Bosque Mágico - Maurice Genevoix

Havia em certo bosquezinho da Terra um reino encantado onde reinavam dois reis muito simpáticos.
Era no tempo em que os homens ainda não tinham conquistado tudo e atravessado tudo com as suas auto-estradas, os seus postes de electricidade e até o próprio céu com os riscos brancos dos seus aviões supersónicos.
Naquele bosquezinho não se ouvia outro barulho que não fosse o toque-toque do picapau no tronco do carvalho, o canto da toutinegra tagarela, ou então a canção do vento, solene e grave, por entre a ramaria das árvores.
Que paz, que abençoado sossego! Ali, todos os bichinhos viviam felizes, em boa harmonia uns com os outros, graças aos dois reis simpáticos que reinavam cada qual por sua vez, um durante o dia, outro durante a noite. Um era louro, de carinha rosada, olhos azuis, cabelos encaracolados e luminosos como o nascer do Sol. Chamava-se Antalcitor. O outro era moreno, de face pálida (mas viçosa como uma camélia branca), olhos negros (mas transparentes como a fonte à sombra). Chamava-se Galaor.
Faço muito empenho em dizer-lhes os nomes, principalmente por serem os nomes deles e ninguém lhos poder mudar. Teria sido igualmente prático chamar-lhes Louro e Moreno. Mas isso são apelidos de gente, e Antalcidor e o seu amigo Galaor eram ambos geniozinhos. Geniozinho do dia e geniozinho da noite. Vou tentar contar-lhes agora exactamente como as coisas se passavam.
Realmente não podia ser mais simples. Assim que a madrugada fazia empalidecer a noite lá no extremo do Atalho Maior, assim que a cotovia soltava o seu primeiro trinado, Antalcidor aparecia ao longe, no limite do bosquezinho.
Tinha o aspecto de um belo rapaz de dezasseis anos, mas que não tivesse mais de três palmos de altura, quando muito. Vestido de cetim cor-de-rosa, seda branca e fitas azuis, fina espada de prata, um salpico de oiro na gravatinha e na fivela do cinto, brilhava como um pedacinho de céu sob o túnel da folhagem.
Mal tocava com os pés na relva. Mas não tinha pressas; aqui, dava lustro a uma folha de junquilho, além, cheirava uma primavera. De vez em quando parava, olhava para a direita, para a esquerda, batia as palmas e cantarolava uma cantiga de geniozinho, a canção matinal do render da guarda:

A pé! A pé! É já manhã!
O meu reinado principia.
O rei da Noite adormeceu;
P’ra o seu lugar aqui estou eu,
Antalcidor, o rei do Dia.


E lá ia, de narizito no ar, só interrompendo a cançoneta para dar gargalhadas e ordens:
— Salta, esquilo! Do pinheiro para o bordo, patas esticadas, cauda bem desfraldada! Apoia-te no vento que passa! E tu, ó toutinegra? Porque esperas, tagarela? Põe-te a tagarelar! E tu, ó pica-pau? Onde tens o gorro verde e encarnado? Pica, pica-pau! E tu, ó pombo azul? Arrulha! E tu, melro preto? Assobia!
E batia as palmas, despertando a ervinha e a flor, o primeiro sopro da aragem da madrugada, a gota de orvalho poisada numa folha, a tagarelice da toutinegra, o arrulho do pombo azul, o toque-toque do picapau no tronco do carvalho e o trinado alegre do melro.
— És tu, Antalcidor? Estou a dormir.
— Já?
— Ou quase... Já são boas horas de chegares.
Sem forças, semicerrando as pálpebras de pestanas escuras, Galaor acolhia o recém-chegado. Era sempre à mesma hora, debaixo da árvore mais linda do bosque, num sítio que se chamava Coração-de-Estrela, porque ali vinham dar todos os caminhos e atalhos.
A árvore de Coração-de-Estrela erguia-se exactamente ao centro, tanto assim que se via de toda a parte, enorme, gigantesca, cobrindo a clareira com a sua copa sussurrante e frondosa.
Era um bordo, de casca prateada, cujas raízes tinham levantado a terra, formando um pequeno montículo coberto de musgo. O palácio real ficava aí, entre duas dessas raízes, enormes, nodosas, mas tão suavemente arqueadas que nenhuma casa humana poderia ser tão sólida e agradável, nem tão sumptuosa nem tão bela.
Não havia tecido algum, de brocado ou damasco, que pudesse rivalizar com o musgo espesso e cheio de reflexos doirados. O luzidio das raízes brilhava como couro de Córdova. A neblina da madrugada e a neblina do entardecer suspendiam graciosos cortinados mais transparentes que a mais fina cambraia.
Aranhas tecedeiras entrelaçavam os fios, armadilhas para o orvalho de pérolas tremulantes porque nenhum insecto ali caía.
Não havia nada mais macio nem mais fofo que o chapéu dos cogumelos novos, aqueles que se chamavam boletos-pão-de-ló. Nunca houve rei dos homens que se sentasse em trono almofadado mais fofo, de tom mais rico e mais quente que o trono-cogumelo, o trono-boleto-pão-de-ló, em cima do qual os geniozinhos do bosque se sentavam.
Nunca ambos ao mesmo tempo, já se sabe. Assim que Antalcidor aparecia, Galaor levantava-se para se ir embora. Mal tinham tempo para trocar os bons-dias.
O geniozinho da noite piscava os olhos, bocejava, sacudia o veludo negro do gibão.
Debruçado sobre a corola de uma flor, bebia o orvalho da manhã.
— Está tudo em ordem? — perguntava Antalcidor.
— Tudo em ordem.
— Até logo à noite?
— Até logo à noite — respondia Galaor. — Ao primeiro voo do noitibó.
E partia imediatamente. Nunca se soube para onde. Deviam descansar em qualquer sítio, lá para os limites do bosque, num outro palácio desconhecido, esse absolutamente secreto. Nem sequer me sinto no direito de falar nele.
Chegado o momento, o geniozinho reinante via apa¬recer o seu amigo, sempre lá ao fundo do Atalho Maior. Acolhia-o no palácio real, entre as raízes do grande bordo, cedia-lhe amavelmente o trono, bebia da corola de uma flor alguns goles de água perfumada e desaparecia durante doze horas: um até ao nascer do dia, o outro até ao cair da noite.
Era assim que as coisas corriam. Não podia estar tudo melhor combinado. Nunca havia arrelias, nunca havia discussões, nunca havia sarilhos, como se costuma dizer. E a verdade é que não haveria a mais pequena história a contar, a não ser uma história sem complicações (mas, apesar de tudo, linda como um galopar de corça ou um voo de andorinha) se...
Aconteceu tudo por culpa do besouro, da espécie isca-riscada, pesado e peludo. Não era um besouro mau; apenas demasiadamente zumbidor como todos os besouros do mundo; mas, além disso, muito cheio de si e de melindres.
Era de dia, um dia igual a todos os outros, calmo e primaveril (naquele bosque estava-se sempre na Primavera) com bocadinhos de céu azul que passavam pelo intervalo das folhas, canções de pássaros de que já falei (esquecia-me da felosa, de penas verdes) e uma borboleta da urtiga, magnífica, que batia as asas devagarinho em cima de um joelho de Antalcidor. E havia também o besouro, infelizmente!
Chegou numa réstia de sol, foi de encontro ao tronco do bordo, fez «bzzim!», saltou, foi de encontro à testa do geniozinho, fez «bzzum!», saltou outra vez, andou à roda da borboleta da urtiga, rodopiou, zumbiu, fez voar a borboleta, bateu de encontro a tudo, com as asas a vibrar tanto tempo e com tanta força que não havia mais nada a fazer senão tapar os ouvidos, enquanto aquele zumbido besourante, buzinante, rodopiante, enchia o palácio com as suas voltas e reviravoltas, os seus tombos e a sua desenfreada loucura.
— Vai-te embora, besouro! — disse Antalcidor severamente.
— Que foi que eu fiz? — choramingou o besouro, sempre a girar. — Eu vinha da chapa do sol, a sombra cegou-me... Por isso é que bati com a cabeça. Magoei-me mais do que julgas: as paredes do teu palácio são duras.
— E a tua cabeça também — disse o geniozinho. — Nem se imagina! Fiquei com um galo na testa... Vai-te embora, besouro!
E curvou-se para agarrar na sua erva de S. Tiago, uma grande tasneirinha de flores douradas como estrelas, que lhe servia de varinha mágica.
— Uma vez... Duas vezes... Vou dizer três...
E, de repente, fez-se silêncio: nem barulho, nem besouro. À ordem do geniozinho cor-de-rosa, o raio de Sol levou-o tão depressa como o trouxera. Muito descontente, furioso, ressentido. Mas o simpático Antalcidor nem dá por isso. Está nesse momento a ouvir trinar a cotovia. A borboleta voltou a poisar-lhe no joelho. E o dia bonito recupera a calma sob o olhar do rei geniozinho.
A alegria brilha de novo nos seus olhos, uma grande alegria feita de amizade por tudo o que o rodeia: o ar puro, as árvores, os tufos de erva, os animais inocentes, os que ele vê e os que não vê mas sabe estarem ali, cada qual no seu lugar naquele pequeno reino florestal — os animais nocturnos que esperam por Galaor, adormecidos na toca, num buraco de árvore; os grandes que nunca se aproximam, por amabilidade, para não assustarem um geniozinho tão simpático, tão pequenininho. Mas também esses — o cabrito-montês, o veado velho, o javali — se sentem satisfeitos com o seu reizinho, com a boa ordem que reina no mundo, com uma harmonia que nem sequer é perturbada pelo voo tonto de um besourão.
Deste modo, Antalcidor continua o lindo sonho acordado que se repete todas as manhãs. Sente-se digno da confiança que nele e em Galaor deposita o Grande Rei dos geniozinhos.
Diz de si para consigo: «Não sei o que se passa durante a noite. Mas de dia, mesmo assim, vai indo tudo bem. Ah! Não tenho nisso grande merecimento: basta uma chamadazinha à ordem, lá de vez em quando. Nem sequer é preciso empunhar a minha erva de S. Tiago. O meu povo é bem-educado, obediente...»
— Hihi! — canta uma voz estridente. — Hihi!
— Que foi isto? — murmura o reizinho. — Quem está a fazer troça? Quem tem semelhante atrevimento? Estarei a sonhar alto?... Ah, bom, é simplesmente o pica-pau que muda de árvore. O principal é que continue a bater... Bate, bate, pica-pau!
Imediatamente o bico do pica-pau recomeça a bater noutro carvalho. Um leirão, sem ruído, parece cair de uma faia, passa mesmo junto aos pés de Antalcidor, segurando na boca um fruto. «Picapau no carvalho — diz consigo o geniozinho — leirão na faia, está tudo certo.»
E põe-se a cantarolar, por brincadeira, a lengalenga para uso dos reis-geniozinhos:

Leirão na faia
Búzio na praia
Picapau no carvalho
Mosca no bugalho
Rata no trigo
Vaca no pascigo
Carraça no cão
Pulga no colchão
Pega no ninho
Toupeira no buraquinho
Burro no palheiro
Galinha no poleiro
Corça na floresta
Lebre na giesta
Cabra no rebanho
Lontra no banho
Castanha no ouriço
Abelha no cortiço


E assim, durante muito tempo, sem um esquecimento, sem um engano, sem errar uma sílaba sequer e também sem tomar fôlego (de contrário, perde-se)

...Porco na lavadura
Cotovia na altura!


termina finalmente Antalcidor. «Uff!...» E respira fundo, satisfeito por ter ganho e por poder dizer que mais uma vez ficará descansado durante todo o dia, mais um lindo dia sem complicações.
Isso é o que ele julga, o ingénuo do Antalcidor! Esqueceu-se completamente do besouro, do besourão, tão cheio de melindres e ressentimentos, que foi enxotado e humilhado, e que naquele mesmo instante...
Que andará ele a fazer, esse tal besouro às riscas? Julgar-se-ia que voa inocentemente de flor em flor e que também já se esqueceu de tudo.
Mas então porque se esconderá ele, ao passar do sol para a sombra, com a sua gorda barriga dourada às riscas pretas? Por que motivo voará na ponta das asas, de mansinho, de mansinho, desejoso pela primeira vez de passar despercebido, ele que adora ouvir o seu próprio zumbido de besouro zumbidor?
Vai e vem, seguindo sempre o mesmo percurso diante da porta do palácio, sempre da mesma flor para a mesma flor. Há muitas em Coração-de-Estrela, as mais lindas de todo o bosque.
Mas aquelas duas são as mais bonitas de todas: uma erva-pombinha azul-pálida, cor do céu quando a tarde lhe apaga a cor, e uma campainha, também azul, mas luminosa como a manhã. (Na língua dos geniozinhos, a primeira chama-se Colombina e a segunda Bellflower, o que quer dizer, segundo parece, Sinoflor).
Deste modo, voa o besouro e torna a voar, de Colombina para Sinoflor e de Sinoflor para Colombina, sem descanso, sem barulho, enquanto Antalcidor sorri e não dá por coisa alguma.
O dia vai morrendo, resvalando devagarinho para a noite. E a hora a que o geniozinho do dia, como de costume, principia a olhar para as bandas do Atalho Maior, lá no extremo do túnel frondoso, onde daí a pouco, vestido de veludo negro, igualmente encantador, com três palmos de altura igualmente, vai aparecer o geniozinho da noite.
Ali vem ele, o pontual Galaor, recortando a delicada silhueta no horizonte que escurece. Por cima do seu ombro já brilha a Estrela Vésper. Antalcidor vê-o chegar e o seu coração afectuoso enternece-se:
— Que bom amigo! Que simpático rei! Como será que ele se governa, às escuras, no meio de todos aqueles bichos inquietantes?... Ah, lá vem o noitibó. Nem sequer se ouve voar. Não gosto disto... Despacha-te, Galaor!
Finalmente, ouve sob os ramos a voz clara do outro geniozinho. É a canção do render da guarda da noite, evidentemente:

A pé! A pé! Escondeu-se o Sol.
Estrelas de prata vão brilhar.
Acordai vós, povo nocturno,
Chegou agora o nosso turno!
Antalcidor pode ir sonhar.


Antalcidor boceja e sorri.
— Tudo em ordem? — pergunta o recém-chegado.
— Tudo em ordem.
— Até amanhã?
— Até amanhã — responde Antalcidor. — Ao primeiro trinado da cotovia.
E acrescenta, espreguiçando-se:
— Tenho tanto sono! Nem vale a pena esta noite beber a água de Sinoflor.
— Oh, desgraçado! Não deixes de fazer semelhante coisa! — protesta Galaor com um ligeiro arrepio.
— Descansa! — sossega-o o amigo. — Como havemos de fazer respeitar as leis, se nós próprios as não cumprimos?
E, transpondo o limiar musgoso, inclina-se para Sinoflor, bebe a água fresca do relento no fundo da corola e afasta-se pelo Atalho Maior para alcançar o palácio secreto.
Nem ele nem Galaor ouviram crepitar um pequeno rumor de asas junto do pé da Campainha. Era o besouro escondido na relva que vira o geniozinho do dia a beber e que não pudera conter a sua satisfação.
Porquê? Esperem pelo resto da história.
Portanto, aí temos Galaor instalado, empoleirado em cima do seu trono-cogumelo. Aí o temos a bater as palmas e a dar as suas ordens para essa noite:
— Morcego, esvoaça e entrelaça!... Mostra os teus grandes olhos, coruja!... Família ouriço, cá para fora! Saiam todos debaixo do silvado!... Tu, sapo do luar, faz tilintar a tua bigorna!...
E tudo se faz como ele manda: a coruja acende os olhos dourados; o morcego e o noitibó entrelaçam os seus voos caprichosos; os ouriços em correnteza, o papá adiante, a mamã atrás, os meninos ouriços por ordem de tamanho, revolvem com o focinho as folhas secas; e o sapo da fonte, invisível na neblina leve, faz tilintar a sua bigorna de cristal.
«Perfeito, perfeito! — pensa Galaor. — Não sei o que se passa durante o dia e como será que Antalcidor se governa com todos aqueles bichos turbulentos. Mas, ainda assim, durante a noite, vai indo tudo bem. O meu povo é dócil e sossegado. Que belas horas passadas na escuridão dos bosques, profunda e suave, mais aveludada que o veludo do meu gibão!»
Pelo intervalo dos ramos olha as estrelas girando. A seus pés, um pirilampo brilha na relva como uma esmeralda; depois outro, depois uma centena deles, em correnteza.
Movendo as mãos no escuro, Galaor desenha em redor longas curvas cadenciadas: a fila dos pirilampos alinha ao gesto das suas mãos, e continua a brilhar a toda a largura do palácio como uma grinalda de fogo de artifício. Um grilo estridula baixinho. A pequena bigorna do sapo parece bater ao ritmo da sua límpida canção.
E Galaor baloiça-se no trono, cantarolando a meia-voz o estribilho-lengalenga dos geniozinhos, exactamente o mesmo que Antalcidor cantava, tão depressa como o geniozinho do dia, tal como ele, sem hesitar e também sem tomar fôlego:

Leirão na faia
Búzio na praia
Picapau no carvalho
Mosca no bugalho


e por aí fora, até ... Cotovia na altura!

— Uff! — suspira por fim. — Ganhei. Esperemos sossegadamente pela cotovia.
Falou apenas para si. Mas alguém o ouviu. Quem? Ora... o malvado besouro, escondido agora debaixo de Colombina. Está radiante, esfrega as patorras e pensa, recozendo o seu ressentimento: «Sim, meu amigo, esperemos pela cotovia! Quando ela cantar, é que eu me vou rir!»
A um e um apagam-se os pirilampos. A uma e uma apagam-se as estrelas. O grilo e o sapo calam-se. Ao fim do Atalho Maior o céu torna-se cor-de-rosa. Galaor, um pouco entorpecido, pensa já no rico soninho que irá fazer, durante o dia inteiro, no palácio secreto!
— Nem me valia a pena também beber a água da minha flor — diz de si para si. — Mas, Deus me livre! A lei é lei:

Água de Sinoflor para Antalcidor:
Vai ele dormir quando a coruja pia
Colombina guarda para Galaor
A água que dá o sono de dia.


E afinal — acrescenta sorrindo — a flor mais bonita e a água mais deliciosa são as minhas:

Podes tocar e tilintar
Até cansar, ó Campainha.
A minha flor é só aquela,
A que entre as mais é a mais bela
Das flores azuis: a Erva-Pombinha.


Levanta-se, dirige-se lentamente para Colombina, inclina-se sobre a sua corola funda e bebe a grandes sorvos o orvalho da madrugada.
Que fresquinho! E, no entanto, parece-lhe mais perfumado, mais estonteante que nas outras manhãs. Mais um golinho, mais outro... Que aconteceu a Antalcidor? Já cá devia estar. O dia cresce. É a cotovia a cantar?... É ela, é. O seu trinado aproxima-se, ecoa nos limites do bosque, mesmo no extremo do Atalho Maior. Mas é inutilmente que Galaor fita o buraquinho de luz que brilha lá ao fundo, sob o túnel dos ramos: ninguém. Nem sombra de geniozinho.
A claridade agora alastra por todo o lado; largos pingos de luz inundam Coração-de-Estrela. O pombo azul arrulha no bordo. Uma labareda ruiva atravessa o ar numa pirueta, desenrolando uma cauda comprida e felpuda. E Galaor estremece, ele que nunca viu um esquilo, diante daquele bicho peludo que voa tão leve como um pássaro.
— Antalcidor! Antalcidor! — chama ele.
Em seu redor tudo se agita, estremece, resfolga, pia e chilreia. Grandes aranhas pançudas baloiçam-se na ponta do fio. Zumbem abelhas, tirando o pólen de flor em flor.
— Antalcidor! — continua a chamar o pobre abandonado.
Mas inutilmente. Nem rasto de Antalcidor. E de minuto a minuto a desordem aumenta. Gaios pairam, pegas brigam furiosamente na ramaria do próprio bordo. Que horríveis gritos! A luz do Sol tremelica, cada vez mais deslumbrante. E Galaor, perdendo a cabeça, geme: — Já não vejo nada! Tenho os ouvidos estoirados!... Ai, ai! Que irá acontecer?
Que é feito do bom silêncio nocturno, tão puro, em que guisalhava o cantar do grilo, em que tilintava em pancadas límpidas a pequena bigorna do sapo? Que é feito da obscuridade sedosa e fresca, semitransparente, que reinava em Coração-de-Estrela? Tudo é cru, brutal e agressivo. O pobre geniozinho tapa inutilmente os olhos com as mãos; vê grandes círculos a girar: vermelhos, verdes, roxos, novamente vermelhos. Pela última vez, com a voz a tremer, quase a chorar, chama:
— Antalcidor! Geniozinho do dia! Meu bom amigo, meu irmão, acode-me!...
Mas ninguém lhe responde, a não ser a gritaria das pegas e as gargalhadas trocistas dos gaios.
— Dormir! Dormir! — suspira Galaor. — Há uma hora pelo menos que eu devia estar a dormir...
Ao pensar nisso, o seu desânimo e o seu medo aumentam. Não é só o amigo que o abandona, mas, pela primeira vez na sua vida, está acordado em pleno dia; e não só acordado, mas sem sono; sem sono absolutamente nenhum.
Deixa o trono, desta vez dando um salto, e corre para a erva-pombinha:
— Ó Colombina, também tu serás capaz de me atraiçoar? Eu quero dormir...
Inclinado sobre a corola azul-pálida, mergulha nela o rosto afogueado. Mal restam, lá muito no fundo, umas raras gotas de orvalho.
Bebe-as sofregamente, de olhos fechados, à espera de sentir aquela comichão nas pálpebras a que os meninos chamam o João-Pestana. Mas, pelo contrário, os olhos abrem-se-lhe ainda mais, o sangue corre-lhe mais depressa nas veias. Porquê? Porquê? É tão profundo o seu espanto que repete em voz alta:
— Porquê?
— Eu cá sssei! Sssei assim!...
— Quem está a falar?
— Sssim, a sssério! De vvverdade, de vvverdade!
«Aquilo» rodopia-lhe em torno da cabeça, pela direita, pela esquerda, às reviravoltas, aos tombos. Olha, e não vê nada. Agita a mão no ar. Mas que bicho diurno será aquele que está ao mesmo tempo em todo o lado e em todo o lado é invisível?
— Quem és tu? Fala, bicho voador.
— Sou o besouro, sou o besouro! — zumbe a voz redemoinhante. — Dormir? Ah! Ah! Zzta! Nesta fffloresta nem sssono nem sssesta! Nenhum nenhum nenhum nenhum...
— Mas porquê? — suplica o pobre geniozinho. — Se sabes, diz.
— Porrrque sssim — ronca o besouro.
E, com uma batidela de asas, desaparece em pleno sol que ilumina a clareira.
Por toda a parte, em volta de Galaor, reinam a algazarra e a confusão. Àqueles pios, àqueles guinchos, àqueles apitos, àquela desafinação horrorosa é que o geniozinho do dia chama canto dos passarinhos? Não há uma voz que afine com outra; estridulam, fazem surriada, assobiam, interrompem-se umas às outras para suplício de um geniozinho que tem os ouvidos delicados e que tanto desejava dormir!
Ei-lo novamente em cima do trono-cogumelo, no sítio mais macio do belo acolchoado castanho. Embala-se a si próprio, cantarolando baixinho para acalmar: «Fecha os teus olhos, o dia é de oiro...» Essa agora! Não há meio. O dia é de fogo, não é de oiro! Toda a vegetação flameja através das cortinas transparentes que as aranhas teceram.
— Mandrionas! — grita-lhes Galaor. — Façam-me sombra, suas grandes barrigudas! Quero uns cortinados bem espessos!
Mas as aranhas reboludas, suspensas do centro da teia, com as suas oito patas muito afastadas, dormem regaladas ao sol.
De cada vez que Galaor grita, dão apenas um leve estremeçãozito, como nós damos às vezes a sonhar, e ficam outra vez imóveis. Sabem lá porventura quem é Galaor? E Galaor sabe-lhes porventura o nome?
Os seus gritos não têm nada a ver com elas.
O desgraçado Galaor está sozinho, de olhos abertos ao meio-dia, apesar do orvalho que bebeu da corola de Colombina, essa água que faz adormecer durante o dia, a água maravilhosa do geniozinho da noite.
Chora, desesperado. A pluma de avestruz do gorro pende-lhe, caída em frente do nariz. Endireita-a com uma sacudidela da cabeça, subitamente furioso. De pé, entre as raízes do bordo, muito teso, muito encarnado, ele, habitualmente tão pálido, barafusta para todos os lados ao mesmo tempo:
— Insuportáveis bichos! Silêncio! Estou farto de tudo isto! Como te chamas tu, ó lá de cima, o do focinho aguçado, orelhas em bico e rabo vermelho? Tu, sim, tu que tens quatro patas e voas como os pássaros. E tu, ó pássaro cor da noite, donde foi que saíste? Preto como és, devias pertencer ao meu povo, e não te conheço. Ah! Mas o bico atraiçoa-te, esse teu bico cor de sol.
Assim interpelado, o melro solta um longo assobio trocista:
— Rrridículo! Co’a breca! Rrridículo!
E do cocuruto do bordo, o esquilo Rabo Vermelho precipita-se de escantilhão, de ramo em ramo, dá voltas e reviravoltas em redor do tronco, ora pela direita ora pela esquerda, mostrando de cada vez o focinho, e com a patinha faz a Galaor a gaifona mais atrevida deste mundo:
— Não vales nada! Nada! Três vezes nada!
Um bando de chapins com as penas azuis e amarelas todas despenteadas rodeia-o numa sarabanda de asas que lhe tira o fôlego e a voz.
— Quem governa! Quem governa aqui?
— Tu, não! Tu, não! — resmunga outra vez o esquilo.
Galaor, recuando entre as raízes do bordo, cai em cima do trono-cogumelo. De propósito, vira as costas à clareira. Aos poucos e poucos o coração sossega-lhe. Procura recuperar a serenidade.
— Vamos lá pensar — diz ele, para ganhar coragem. — Vamos a recuperar o sangue-frio. Já que Antalcidor desertou, já que o mundo está de pernas para o ar, sou eu, Galaor, quem tem de reinar, seja dia ou seja noite. Preciso de restabelecer a ordem e a disciplina e entregar ao meu colega, quando ele finalmente se dignar aparecer, um bosquezinho digno de nós ambos, um reino encantador e feliz. Vamos lá a isto.
Lembra-se de que todas as manhãs, quando Antalcidor chegava pelo Atalho Maior, vinha sempre a bater as palmas, disparando alegremente as suas ordens. Quais serão as ordens do geniozinho do dia? Era preciso descobrir as mesmas palavras e dizê-las da mesma maneira decidida e alegre. Galaor agarra a cabeça com as mãos, faz um esforço enorme para se lembrar ao menos de algumas das palavras mágicas.
— Ai, é muito difícil! Todos os dias ao amanhecer o sono me vencia, sem eu querer; era no meio dessa espécie de nevoeiro que eu ouvia Antalcidor. Mais um bocadinho: está quase... Coragem, aí estão elas! Está quase... está quase... Portem-se como deve ser, seus desobedientes!
Galaor ergue a cabeça de repente, bate as palmas. A sua voz ecoa através de Coração-de-Estrela, voa ao longo dos atalhos, dos carreiros, pelo bosque inteiro...
— Salta, cabrito, do pinheiro para o bordo! Apoia-te no vento que passa! E tu, cotovia, onde tens o gorro encarnado e verde? E tu, ó melro azul, porque esperas? Esvoaça e entrelaça! Não, não é nada disto... Pica, pica!... Também não é assim! Estou bem arranjado!
Depois de uns momentos de surpresa, as gargalhadas e a surriada desencadeiam-se.
Um grande cabrito montês, de ventas abertas, pula nas quatro patas como se voasse sobre Coração-de-Estrela, encolhe-se e rebola pelo musgo, levanta-se e desaparece aos pinotes, assoprando.
— Está maluco! Completamente maluco!
— Huhuuh! — assobia o vento que passa. — Como é que eu podia levantar ao ar um cabrito montês?... Está maluco!
— Bebeu demais? Bebeu demais? — trina a cotovia. — O meu gorro encarnado?... A minha poupa! A minha poupa!
— Silêncio! — explode Galaor. — Voltem todos pára casa. Todos, ouvem bem? Fiquem lá escondidos até à noite!
A voz engasga-se-lhe. As palmas das mãos ardem-lhe de as bater com tanta força.
Mas cada vez sente maior medo diante da agitação terrível que causou sem querer.
De todos os lados surgem bichos que voam, que saltam, que rebolam, enrolando e desenrolando, através de Coração-de-Estrela, uma farândola fantástica. Coelhos, faisões, lebres da floresta, grandes moscardos tigrados de olhos avermelhados, doninhas ondulantes e amarelas, ágeis lagartos couraçados de esmeralda, saem de cada atalho, de cada pedra, dos troncos das árvores e da espessura da folhagem. E Galaor torce agora as mãos. E suplica com a voz a tremer:
— Deixem-me, eu não lhes fiz nada! Sou apenas um geniozinho, um bom geniozinho da noite... Ui! Brr! Misericórdia, excelentíssimo senhor! Piedade!
É que um enorme javali, de pêlo eriçado, labaredas a bailar nos olhos roxos, os dentes brancos em riste, atravessados na tromba preta, fita-o, mete a cabeça por entre as raízes do bordo... Felizmente a cabeça é grande demais para passar. O javali assopra ruidosamente, torce e retorce o rabo; por fim, grunhindo e aos saltos, retira-se a trote ligeiro.
Galaor está quase desmaiado. Meio inconsciente, balbucia como último recurso as palavras da lengalenga mágica. Mas engana-se outra vez, coitado, mistura tudo, baralha e emaranha tudo:

Burro no ninho
Corça no buraquinho
Picapau no colchão
Ai que confusão!
Lebre no poleiro.
Não é nada disso!
Vaca no cortiço.
Não é bem assim!
Quem se ri de mim?

Riem os bichos todos; e ri o vento na folhagem, riem as moscas nas réstias de sol, as aranhas no meio da teia, o bosque inteiro desde a terra até ao céu.
Mas quem ri com mais gosto, quem continua através da clareira nos seus rodopios, nos seus tombos, com os seus bzzzs, os seus tzzzs? Quem, senão o besouro, o besouro isca-riscado?
Daí por diante, Galaor cala-se. Desiste. Só tem um pensamento, um único desejo: chegar finalmente ao entardecer daquele dia medonho, esquecer aquela desordem escandalosa, aquela sarabanda descarada, que o faz morrer de vergonha.
Adormeceu finalmente? Passou apenas pelo sono? Estremece, repara que o sol ofuscante filtra agora por debaixo dos ramos uma luz oblíqua e dourada. A algazarra acalmou um pouco. Até que enfim! Até que enfim que lhe chega deliciosamente aos ouvidos uma canção vinda do Atalho Maior:

De pé! De pé! Já é manhã!
O meu reinado principia...


Não é verdade. Não é manhã. É noite. Mas, graças a Deus, mesmo que Antalcidor divague, é a sua voz que realmente soa, que se aproxima. E é realmente ele que aparece ao cair da noite, no fim da clareira, vestido de cetim cor-de-rosa e seda branca, pimpante, elegante, de espadinha de prata ao lado.
Galaor boceja, procura sorrir, murmurar o cumprimento do costume e, de repente, cai como um chumbo no fundo de um sono sem margens.
Antalcidor vê o corpo de Galaor dobrar-se, oscilar à beirinha do trono e escorregar inerte para cima do musgo. Alarma-se, corre, chama:
— Galaor! Galaor!
Mas é em vão. Curvado agora sobre o amigo, sacode-o, suplica-lhe desvairadamente:
— Responde-me! Acorda! Não vês que a noite vem a chegar?... Que hei-de eu fazer, que será de mim sem ti?
Para ele também o mundo está do avesso. Continua a falar, a explicar:
— Perdoa-me; a culpa não foi minha. Não acordei; estive a dormir
no palácio secreto até ao entardecer. Como se... Como se tivesse bebido na corola de Sinoflor a tua água que faz dormir de dia. Deitei a correr! A correr! E agora que vai a escurecer, és tu quem dorme, dorme, dorme, como se... Estás a ouvir-me, Galaor? Como se tivesses bebido na corola de Colombina a minha água que faz dormir de noite.
Galaor não responde: dorme. A sombra adensa-se. Os olhos enormes da coruja acendem-se à entrada do palácio. O morcego passa e torna a passar, batendo com o vento frio das asas na cara de Antalcidor.
Os finos cabelos loiros deste eriçam-se, a voz gela-lhe nos lábios. Ah! Que é aquilo? Diante dele, a poucos passos, as folhas do silvado chiam. Quem vem lá? Quem passa assim nas trevas em fila indiana interminável? Qualquer coisa raspa-lhe a perna. Estende a mão, mas retira-a logo soltando um grito: «aquilo» picava como um milhar de picos cerrados!
Ao ouvir o grito, outra criatura salta e vem cair-lhe pesada¬mente sobre um pé como um embrulho de trapos molhados. Antalcidor toca-lhe sem querer e solta novo grito de pavor: era gelado, um bocado peganhento, todo aos altos como se estivesse cheio de borbulhas...
Quem diria ao infeliz Antalcidor que toda a família ouriço e o sapo da fonte tinham tido ainda mais medo que ele?
Está muito escuro. A custo, aqui e acolá, brilham nas trevas luzinhas verdes. Espalham-se, e em breve se apagam. Galaor, estendido no musgo, continua a dormir um sono profundo. Como é que os pirilampos sozinhos haviam de ser capazes de pendurar nas paredes do palácio a sua grinalda de fogo de artifício?
O grilinho cala-se, assim como o sapo da fonte. Mas a noite inteira enche-se de sussurros, de murmúrios, de gritos estranhos, de uivos, que põem o coração aos saltos. O mocho solta um grito escarninho, o alcaravão berra, o lince ulula, a coruja pia, o veado velho brama no vale com tal força que todo o bosque reboa. E, de repente, atravessando o céu, o bufo solta um queixume longo, longo, tão lúgubre que Antalcidor tapa os ouvidos com ambas as mãos, julgando chegada a sua última hora. «É com certeza o lobo» — diz consigo. — «E o lobo! Vai comer-me...!»
Esquece-se da sua erva de S. Tiago caída ao lado do trono. De resto, mesmo que tivesse pensado nela, seria capaz de a encon¬trar no meio da escuridão? Treme. Finalmente o horrível lamento calou-se. Mas logo no semi-silêncio ressoa uma voz por detrás dele semelhante ao sussurro de duas asas que se esfregam uma na outra:
— A lengalenga! A lengalenga! Zzzz ... Zzzz! A lengalenga!
«É verdade! — pensa Antalcidor. — Onde diacho tinha eu a cabeça? Estou salvo!»
E vá de respirar fundo para ir até ao fim sem tomar fôlego nem uma vez só:

Cotovia no bugalho
Pulga no carvalho
Corça no cortiço
Toupeira no ouriço
Ai que grande asneira!
Lontra na toupeira.
Não é assim! Não.
É vaca no cão...

Pára, com as lágrimas nos olhos. Que foi que lhe deu? Que embrulhada é aquela?
— Zzz, zzz, zzz, a lengalenga!... Zzz, zzz, zzz, a lengalenga!... A voz trocista persegue-o.
Dir-se-ia agora que pequenos pratos metálicos se chocam, marcando o ritmo de uma canção triunfal:
— Bzzz zenga, a lengalenga! Bzzz zenga, a lengalenga!...
E realmente é como se um génio malfazejo se alegrasse com o alarido, a desordem e a detestável anarquia que sacodem o bosque nessa noite.
— Toda a noite, bzzz, bzzz, bzzz! Toda a noite, bzzz, bzzz, bzzz!...
— Basta! — geme Antalcidor. — Quem és tu, génio mau?
— Ainda o perguntas? Sou o besouro! O besouro que tu enxotaste! O besouro que se vingou! O besouro isca-riscada. A lengalenga, bzz! A lengalenga, bzz! Isto há-de durar a noite toda!
Ai, é bem verdade. O que Galaor sofreu durante o dia não é nada em comparação com o que espera o desventurado Antalcidor nessa noite.
Como fizera o outro geniozinho, também ele tenta primeiro lutar; bate as palmas, esganiça-se a gritar ordens. Mas a língua embaraça-se-lhe sempre, aumentando a balbúrdia e o horror. Que noite! Tudo fervilha, grunhe, trepa, tudo se retorce, se enrosca, se desenrola, rasteja, ronda, escorrega, estala, em redor de Antalcidor; tudo lhe toca, baila, avança, recua, tudo lhe dá encontrões, e sempre na escuridão cada vez mais escura, sem que lhe seja possível distinguir um vulto, uma silhueta, nada senão aquele fervilhar medonho, aqueles assopros, aqueles suspiros assustadores.
Mas o pior é o zumbido do besouro, o zunido das suas asas e as marteladas dos seus pratos.
Aquele besouro é impiedoso; tão satisfeito que perde a cabeça, quando, no fim de contas, tudo aquilo também pode acabar mal para ele.
Esperemos isso, que bem o merece.
Quando por fim a manhã se avizinha, Antalcidor e ele estão tão cansados um como o outro. O geniozinho, compreende-se: treme de medo e de frio. O besouro, por ter vibrado tanto, voado tanto, saltado e pulado tanto, e aplaudido tanto o seu estratagema maldoso. Passar uma noite inteira a dizer: «Ah! que espertalhão que eu sou! Sou o mais espertalhão dos besouros!», é realmente demais... Ai, sim, sim, não há dúvida de que a história há-de acabar mal para ele.
Assim que o primeiro alvor da madrugada se escoa pelo Atalho Maior, e alcança a entrada do palácio, acaricia em primeiro lugar a carinha de Galaor, adormecido em cima do musgo; o geniozinho da noite sorri e as pálpebras estremecem-lhe ligeiramente.
A luz sobe, transformada em raio de sol, ilumina o besouro com as riscas despenteadas, cambaleante e a ir de encontro a tudo. Quer sair; atira-se contra as raízes grossas. E...
E a sua filarmónica, de repente, muda de tom. Deixou de ser triunfal. Vibra num longo grito de angústia, numa nota só, aguda, desvairada. Galaor acorda logo, senta-se, sorri ao seu amigo, cantarolando maquinalmente a canção do render da guarda:

A pé! A pé! Escondeu-se o Sol...

— Ah, não! — exclama Antalcidor. — É dia! É dia! É dia!
Salta do trono abaixo, estende ambas as mãos a Galaor e ajuda-o a levantar-se. Entretanto, o bater de asas do besouro torna-se cada vez mais aflitivo. Parecia uma corneta a vibrar na nota mais alta, tão fina como se fosse quebrar.
— Onde estás, besouro? Onde estás tu? — perguntam os geniozinhos em coro.
— Aquiii... aqui... — chora o besouro.
A voz vem lá de cima, do alto da porta. Os nossos amigos levantam os olhos, não vêem nada. No entanto, é agora dia claro: aquela enorme bola ruiva e preta havia de lhes saltar à vista.
— Aqui, onde?
— Nas teias de aranha. Fiquei preso!
Lá mesmo em cima, no canto da porta, os geniozinhos avistam por fim qualquer coisa a mexer, a debater-se desesperadamente. E o besouro atrapalhado nos fios, com as patas atadas, as asas paralisadas.
— Libertem-me! — suplica o besouro. — Confesso tudo! Fui eu! Aconteceu tudo aquilo por minha culpa! Desatem-me que eu conto tudo.
— Conta primeiro — dizem os geniozinhos. — Realmente foste apanhado na ratoeira.
Em vez dos festões delicados, transparentes, onde só podiam prender-se as gotas leves do orvalho e as cores do arco-íris, as aranhas tinham fiado cordas suficientemente fortes para amarrar o maior e o mais estúpido dos besouros isca-riscados, e aí estava a prova.
Quando todos perderam a cabeça, quando o dia e a noite se confundem, quando os que devem dormir estão acordados e os que devem estar acordados dormem, é assim que as coisas acontecem, mesmo no bosquezinho mais sossegado e mais feliz da Terra.
— Conta! Conta! — repetem os geniozinhos.
E o besouro, pendurado lá em cima, baloiçando como um badalo de campainha, lamentoso e arrependido, conta:
— Chupei a água de Colombina e deitei-a em Sinoflor com a minha tromba.
— E depois? E depois? — perguntam os geniozinhos, quase sem respiração.
— E depois, naturalmente, suguei a água de Sinobina e deitei-a em Colonflor com a minha chupa.
— Não te enganes, chupador do diabo! — gritam ao mesmo tempo Antalcidor e Galaor. —Não te chega, se calhar?... Trocaste a água das nossas flores, confessa-o, e pronto.
— Sim, infelizmente — diz o besouro.
— Ah! Ah! — troça Antalcidor. — E eu bebi em Sinoflor a água que faz dormir de dia. Por isso não acordei quando chegou a madrugada.
— Ah! Ah! — explode Galaor. — E eu bebi em Colombina a água que faz dormir de noite. Por isso adormeci num sono de chumbo exactamente à hora em que devia reinar.
— Pois, besouro — dizem ambos em coro — parabéns, fizeste um lindo trabalho!... E se nós agora te deixássemos aí em cima?
— Não! Não! — suplica o besouro. — Eu nunca mais torno! Piedade, misericórdia, meus fidalguinhos, meus geniozinhos encantadores e generosos! Pensem que neste momento já tudo entrou na ordem. No coração de Colombina já caíram as lágrimas do orvalho da madrugada. Ele aí está à tua espera, Galaor, pronto para ti! Bebe-o daqui em diante sem desconfiança; e dirige-te ao palácio secreto onde dormirás todo o dia enquanto reinar Antalcidor. E tudo voltará a ser como dantes, quando vivíamos felizes.
— Está bem — sorriem os dois geniozinhos. — Nós perdoamos-te, besouro.
Galaor, de pé sobre o trono-cogumelo, deixa que o amigo lhe trepe para os ombros. Este, com a sua espadinha de prata, solta uma asa do besouro, e pára...
— Estás arrependido? Verdadeiramente arrependido? Juras?
— Juro! — diz o besouro.
Mais dois ou três leves golpes: as patas mexem, as asas palpitam.
— Voa em direcção a nós — ordena Antalcidor. — Vem poisar exactamente diante do trono, na claridade da porta.
O besouro obedece, desce em voo planado, poisando suavemente sobre o musgo.
— Sentemo-nos ao lado um do outro no trono real — continua Antalcidor. — Bem. E agora, meus amigos, a lengalenga! Ambos ao mesmo tempo, Galaor e eu. Tenho a certeza de que vai correr bem. E tu, besouro, os pratos, a corneta, toda a tua orquestra de besouro. Bem a compasso e com toda a força! Que todos os bichos do bosque, os diurnos e os nocturnos, oiçam de um extremo ao outro de carreiros e atalhos. Estamos prontos?
— Estamos! — responde Galaor.
— Estamos! — responde o besouro riscado.
— Então, assim que eu mandar...
Antalcidor apanha do musgo a erva de S. Tiago de flores douradas, levanta-a, baixa-a para dar o sinal. E os dois geniozinhos, a plenos pulmões, de um só fôlego e sem se enganarem uma única vez, entoam e cantam a lengalenga do bosque.
E o besouro, com a sua corneta, os seus pratos, o seu grande tambor zumbidor, acompanha a cantiga dos geniozinhos.
E todos os bichos do bosque correm agora obedientes e pontuais. O esquilo salta do pinheiro para o bordo, de patas esticadas, cauda bem desfraldada; a cotovia tagarela põe-se a tagarelar; o pombo azul arrulha; o picapau bate com o bico no tronco do carvalho e o melro assobia o seu trinado, todos a compasso, enquanto os bichos nocturnos — o noitibó, o morcego, a coruja, a família ouriço e o sapo do luar — se deixam ficar sossegadamente na segunda fila, sabendo que ainda não chegou a sua altura, mas que cada qual terá a sua vez, enquanto os bichos grandes do bosque — o cabrito montês de chifres afiados, esticando o pescoço gracioso e flexível; o veado velho, alçando o focinho por cima das palmas dos fetos; o javali, espreitando na orla do arvoredo — retêm a respiração e ficam imóveis a escutar os dois amigos
:
Leirão na faia
Búzio na praia
Picapau no carvalho
Mosca no bugalho
Rata no trigo
Vaca no pascigo
Carraça no cão
Pulga no colchão
Pega no ninho
Toupeira no buraquinho
Burro no palheiro
Galinha no poleiro
Corça na floresta
Lebre na giesta
Cabra no rebanho
Lontra no banho
Castanha no ouriço
Abelha no cortiço...


E assim até ao fim, sem um esquecimento, sem tomarem fôlego, até (lembram-se?)

...Porco na lavadura
Cotovia na altura!


Às alturas, como a cotovia, sobem as vozes frescas dos geniozinhos. Sinoflor e Colombina erguem-se muito tesinhas no seu pé, mais azulinhas que nunca.
— Agora nós! — exclama o besouro.
E os bichos todos, mais as duas flores — a campainha e a erva-pombinha — vá de cantarem em coro com toda a alma, como um voto de felicidade feito para sempre:

Já se viu à luz do Sol
Ou ao luar prateado
Dois reizinhos como estes
Que nos têm governado?
Vivam com muita alegria
Um de noite, outro de dia!




Maurice Genevoix
O bosque mágico
Verbo, Lisboa, s/d
adaptado


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